sábado, 5 de dezembro de 2009

“Acho que acabei de fazer minha obra-prima”

Marina de Campos, acadêmica do VII Nível de Jornalismo

Pois bem, então a história na tela começa com um ressoante “Era uma vez... na França ocupada por nazistas”. Para este relato, melhor seria – e não raro é assim mesmo que funciona – que a estória começasse quase que pelo final.

“Era uma vez... em um cinema tomado pela tensão de meia dúzia de fanáticos, as luzes rubras de um cineasta inconseqüente projetadas nas faces distorcidas enquanto estômagos reviram-se e corpos, que estariam suados de horror não fosse o potente ar condicionado, exalam algo parecido com um medo disfarçado em riso. Estão voluntariamente submetidos a mais de duas horas e meia de doentia experimentação, como cobaias que sabem do mal que as aguarda mas não resistem à masoquista sensação da descoberta que é sentir-se chegando ao limite, enfim”.

A essa altura, a sensação já não é mais qualquer uma, e sim a última que se esperaria em uma tranqüila sessão de cinema. Um sentimento parecido com o que venha a ser uma overdose da droga mais pesada que ainda não existe, que atinge os músculos mas mantém os olhos paralisados, que inunda a boca seca com um gosto amargo de vida enquanto a visão é embaçada pela morte – as doses são muito altas, não há o que se possa fazer. Não há, mas é isso que Quentin Tarantino faz em Bastardos Inglórios: anestesia de admiração profunda o espectador que se sujeita, e o violenta da maneira mais crua enquanto seu corpo imóvel apenas aprecia.
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Forte demais? Provavelmente. E também grotesco, nauseante, exagerado, incoerente, sangrento e diferente demais para que seja compreendido à primeira vista. Mas quem quer mediocridade deve mesmo é passar longe de um cinema – templo da intensidade -, ou ficar com a sessão da tarde na televisão. A escuridão da sala serve para esconder dos outros os espasmos de emoção mais íntima, a hora em que as mãos se obrigam a poupar os olhos de uma sequência insuportável, a pele arrepiando-se perante tudo aquilo com que o inconsciente sempre sonhou ver em uma tela. Isso porque, nesses 153 minutos de provação, desfilam como em uma macabra peregrinação as referências mais incongruentes da história, do cinema e da vida de qualquer um, culminando em uma obra que não pode ser menos do que genial. Mas vamos por partes... (sim, como um esquartejador – pois aqui o infame trocadilho cai como uma luva).
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Sinopse, a desnecessária
Tem certeza de que você precisa mesmo de uma sinopse que seja do seu agrado como motivo para ir até o cinema assistir a Bastardos Inglórios? Se sim, de nada vale o que está escrito aqui. Mas se, por acaso, o nome do diretor, o elenco e o fato do filme estar sendo aclamado como o melhor do ano já seduzem você, então estamos falando a mesma língua. Desta vez, Tarantino não precisa apelar para complexas tramas de vai-e-vem, pois aproveita-se da mais pura simplicidade para destacar a sua criação. Caricaturas de uma absurda realidade, nazistas cativantes, judeus sanguinários, mocinhas assassinas, e o que mais, de que mais você precisa?! Então vamos lá. Tudo começa no casebre de um camponês que recebe a visita do coronel Hans Landa, o Caçador de Judeus. Após uma das sequências mais tensas do cinema contemporâneo, a família da jovem Shosanna Dreyfus é friamente executada, e apenas ela consegue escapar. Anos depois, em uma França ocupada pelos nazistas... O tenente norte-americano Aldo Raine reúne um grupo de soldados judeus para assassinar e escalpelar o maior número possível de nazistas, tendo como grande ápice da secreta batalha a estreia de um filme alemão em um pequeno cinema francês. Pequeno cinema francês de propriedade de quem? Sim, a sobrevivente Shosanna. A partir daí, não fica difícil adivinhar no que o surgimento de uma monumental vingança feminina bem no meio do caminho poderá resultar.
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Experiência, a boa novidade
Mas como toda boa história, esta não começou hoje. Tarantino começou a fazer Bastardos Inglórios quando ainda era um jovem atendente de locadora. Depois, o aperfeiçoou quando alcançou o cinema e dirigiu clássicos definitivos como Cães de aluguel, Pulp Fiction e Kill Bill. Agora, cinco anos após seu último sucesso – como um sádico que tortura suas vítimas com a angústia da espera -, o cineasta constrói minuciosamente, com tudo que aprendeu nestes anos, àquele que tem tudo para ser o ápice de sua carreira. O porquê é pouco óbvio: o que se vê em Bastardos não é mais uma novela tarantinesca, mas sim um exemplo de cinema dos mais requintados, com direito a fusão de todos os gêneros possíveis – guerra, drama, comédia, terror, faroeste -, e o toque especial dele, o diretor trash que subiu ao patamar dos grandes deste século por colocar paixão em cada cena – não importando o nível de sangue que ela contenha.
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Hans Landa, o maníaco conquistador (& outras figuras)
Sentir simpatia, piedade e até certa identificação com um nazista é pecado, não é? Pois ajoelhe-se e peça perdão assim que deixar o cinema, porque Tarantino não vai permitir que ninguém saia ileso. Com o Coronel Hans Landa, todas as inversões possíveis são realizadas: do mais perverso vilão ao mais hilário personagem dos últimos tempos, o excelente ator Christoph Waltz mostra do que um poliglota furioso é capaz. Elegante e atencioso com suas vítimas, rouba todas as cenas em que aparece por sua insanidade traduzida em inglês, francês, alemão e até italiano, e um brilho carismático no olhar - that's a bingo! - que denuncia suas verdadeiras intenções. Mas ele não vem sozinho. Seu contraponto é o tenente Aldo “Brad Pitt” Raine, com seu sotaque sulista, seus trejeitos quase ridículos e a surpreendente atuação cômica de um rosto bonito escolhido para comandar um verdadeiro bando de malucos. Shosanna, com seu mau-humor ácido em contraste com os traços delicados, a torna uma perfeita musa para Godard – o que rende, inclusive, inúmeras menções à nouvelle vague francesa durante um filme de guerra que mais parece um western. Pois é.
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Violência, a protagonista
Não há nada mais frágil do que o corpo de um homem. Ou há alguma outra explicação para a facilidade com que se arranca um escalpo e a rapidez com que se esmaga um crânio com um taco de baseball? Figura constante, a violência atua no filme como uma forma de prender a atenção hipnotizando por sua beleza quase maldita. Mas além de sangue, cortes, balas, fraturas expostas e corpos caídos pelo chão, Bastardos Inglórios também trabalha com a violência psicológica, a tortura mental que toma o espectador nas cenas mais tensas onde o diálogo é a arma mais letal. Em cada um dos capítulos – sim, o filme é dividido em capítulos com nomes trágicos como A vingança do rosto gigante – a violência se concretiza de maneira diferentes, cada uma mais arrebatadora que a outra, com ou sem corpos arrasados. Mas um dos ingredientes mais importantes para que o alto teor violento do filme funcione é a fabulosa – e extremamente inesperada - trilha sonora escolhida para o filme. Além de David Bowie, há o toque magistral de Ennio Morricone, grande monstro das trilhas sonoras dos filmes de faroeste de todos os tempos. Em alguns momentos, como a hora em que o Urso Judeu está prestes a sair de um túnel com seu taco sanguinário ou os segundos que precedem o clímax – com direito a aparição de Hitler, incêndios de proporções cinematográficas (literalmente) e o gran finale mais inconcebível – a música não é apenas o querosene, mas também o fósforo que faz tudo se desfazer em chamas.
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Atemporalidade, o segredo
Com esmero e capricho nunca antes vistos em detalhes como a fotografia, o cuidado com o tempo, a edição perfeita e um conjunto capaz de fazer com que qualquer um se disponha a passar dias dentro do cinema assistindo ao que quer que ele apresente sem interrupção, Tarantino age como um aluno rebelde que, por mais que mereça 10 em todas as disciplinas, faz questão de desenhar o professor no canto da prova e mostrar que não dá a mínima. Cenas que quebram qualquer clima de seriedade – e que ainda ficarão famosas – como a breve biografia do Sargento Hugo Stiglitz com atmosfera de filme B ou a emocionante passagem em que David Bowie grita nos ouvidos com Cat People (estamos em um filme de época, mas nada poderia ser mais anos 80) são a prova de que este é um filme de Quentin Tarantino – um homem esperto o suficiente para evoluir radicalmente sem deixar de ser quem sempre foi.
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