sábado, 16 de maio de 2009

A Outra Gripe

Luis Henrique Boaventura

A maior herança de uma gripe que não tem metade do grau de letalidade que se especulava foi mesmo o desencadeamento de um vírus mais rápido e mais difícil de ser combatido: a doença social, o mal do preconceito e a fobia étnica como ferramentas pra manutenção e mutação de velhos perigos. De um lado, a “nova gripe”; de outro, o novo racismo.

Porque o medo aproxima os seres humanos de seus instintos na mesma proporção que os afastam de toda e qualquer lei criada para que o convívio social e civilizado se torne possível, dependendo, claro, do grau que atingir. Diante de um evento que ameace seriamente a segurança da comunidade internacional (como a pandemia de um vírus desconhecido, por exemplo), o medo é uma ferramenta fundamental para estabelecer o cumprimento de certas regras (o velho princípio angular da religião, conhecido por todos) e o controle das massas numa situação, o que se tratando de saúde pública, não deixa de ser extremamente importante. Entre os efeitos colaterais, no entanto, principalmente quando o alarde é desproporcional ao problema, está a fobia destilada e servida de vários modos.

A situação poderia ter sido bem pior caso a própria gripe suína tivesse feito jus à sua publicidade, mas é inegável que se escancarou, desde abril, uma janela panorâmica para o preconceito contra mexicanos, e que levará meses (talvez anos, talvez nunca) para se fechar completamente. Neste meio tempo, “evitar o contato com mexicanos” foi praticamente um item elencado junto à lista de precauções para evitar o contágio da gripe, e o que é pior, levado ao pé da letra em vários momentos.

Em abril, no auge da gripe suína (não vou chamar de nova gripe nem H1N1H²CO² porque o nome já se estabeleceu e o estrago no consumo de carne suína já está feito , o governo da China isolou 110 mexicanos de diversas cidades em quarentena sem que apresentassem qualquer tipo de sintoma, o que provocou reação imediata da chanceler mexicana Patrícia Espinosa no que classificou como “medidas discriminatórias e carentes de fundamento”. O resultado foi um manifesto oficial do governo do México na Organização das Nações Unidas (ONU).

“Não podemos viver num mundo de percepções que estão dando lugar a manifestações xenófobas, que afetam, inclusive, as relações entre os Estados. Alguns Estados estão restringindo ou estudando restringir o fluxo de bens e pessoas vindas do México, apesar de não existir nenhuma justificação científica para isso”, foi o que disse o subsecretário de Assuntos Multilaterais e Direitos Humanos do México, Juan Gómez Robledo. Logo em seguida, o Presidente Felipe Calderón fretou um vôo para tirar seus cidadãos de território chinês. Em resposta, a China anunciou o “resgate” de 200 chineses de solo mexicano.

Diante de tamanha tensão diplomática, Argentina, Equador e Peru simplesmente proibiram vôos vindos do México, enquanto Cuba restringiu a ida para o país. O Equador retomou ida e volta recentemente, embora o veto à importação de carne ou qualquer material genético de México e EUA siga de pé, e a segurança em aeroportos tenha sido intensificada.

Outro exemplo de entidade oficial praticando o preconceito veio da Conmebol, junto às direções do São Paulo e do Nacional, do Uruguai. Os dois clubes decidiram que não jogariam as partidas das oitavas-de-final da Libertadores em território mexicano, opção que nunca existiu antes da gripe, mas que neste caso foi amparada e apoiada pela Conmebol. Como resultado, a FMF (Federação Mexicana de Futebol) retirou suas equipes da competição.

Veio do futebol, aliás, o protesto mais válido e original frente a esta xenofobia explícita que vem atingindo os mexicanos. Todos provavelmente já viram e reviram, mas o registro é válido. Numa partida entre Everton (Chile) e Chivas (México), o jogador Héctor Reynoso “ameaçou” um adversário com a gripe suína.

http://www.youtube.com/watch?v=RyAZV-LX9L4

Héctor foi suspenso, lógico, mas é sensível nas suas declarações o tom de revolta com a situação e com que os cidadãos mexicanos estão tendo que enfrentar:

“Não agüento ver todo mundo falando que todos nós somos doentes. Fizeram com que nos sentíssemos mal, já que quando fomos ao centro comercial, todos que estavam lá taparam a boca quando nos viram passar. Não queriam se aproximar da gente. Passavam de lado ou diziam 'aí vêm os mexicanos, vão nos infectar'. Fizeram com que nos sentíssemos como leprosos e acho que não é para tanto”.

E não bastasse o impacto social aparentemente irreversível, a Câmara de Comércio do México anunciou um prejuízo diário de US$ 57 milhões, embora fontes extra-oficiais garantem que o número pode chegar a US$ 250 milhões. O turismo ainda é o principal prejudicado. Atualmente, todo o setor está estagnado, mas mesmo quando reaberto, o impacto do medo ressoará através dos anos.

Apesar de, ok, o vírus ter surgido em território mexicano, e apesar de uma certa dose de pânico ser necessária para que o mundo leve a sério e se previna, o efeito mais devastador da gripe suína sobre o país será mesmo o do preconceito e da discriminação, algo irressarcível e com o qual o México terá que aprender a conviver. Cenas como a citada pelo jogador do Chivas, “todos que estavam lá taparam a boca quando nos viram passar”, se tornarão comuns mesmo após o controle da gripe.

O sentimento que fica é de que, dentro deste contexto de mundo, se um irmão ficar doente, ao invés de haver uma reunião em torno do ocorrido e uma tentativa de ajuda (a antiga utopia de fraternidade aparentemente incompatível com a natureza humana), isola-se toda a população de um país do resto do planeta para que a) a doença não se espalhe. b) todos os infectados ou se curem ou morram de uma vez, não importa.

Enquanto isso, o mundo continuará atravessando a rua caso encontre um mexicano vindo em sua direção.

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